Enquanto conduz um caminhão-tanque com potência de 460 cavalos, 19m de comprimento e carga de 35 toneladas de óleo vegetal, Sandra Sasinski, 39 anos, cita Simone de Beauvoir. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, diz, entre uma ultrapassagem e outra. Ela cumpre a rota de 1.400 quilômetros de Luziânia (GO) a Conceição da Feira (BA).
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No Brasil, são 182.376 cidadãs habilitadas a dirigir caminhões, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Elas correspondem a 6,5% do total de quase 3 milhões de profissionais com carteiras das modalidades requeridas para esse tipo de condução.
Quando a categoria parou o país para reivindicar, entre outras demandas, a redução do preço do óleo diesel, em maio de 2018, não havia rostos femininos nas lideranças do movimento. Mas as caminhoneiras estavam ali: organizando protestos, administrando grupos de WhatsApp e demonstrando apoio nas ruas e redes sociais. São parte, cada vez maior, de uma massa de trabalhadores essenciais ao funcionamento do Brasil.
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[gallery type="slideshow" size="full" ids="17854,17855,17856,17857,17858,17859,17860,17861,17862,17863,17864,17865,17866,17867,17868"] Para as mulheres dessa profissão, contudo, há uma exigência a mais. Elas aprendem a calcular as paradas no trajeto, sempre preocupadas com a segurança. Muitas estiveram sob a mira de armas durante roubos de carga e criaram estratégias próprias na tentativa de se protegerem de assédio e violência sexual.
Durante quatro anos de pesquisa, Luna recebeu relatos de caminhoneiras sobre os desafios do dia a dia. Entre as principais questões detalhadas, está a falta de infraestrutura para as trabalhadoras em empresas e pontos de parada nas rodovias brasileiras, bem como uma lista de problemas de saúde decorrentes da atividade laboral.“Além de todas as pressões que independem de gênero, elas, por serem mulheres ao volante, precisam provar a todo momento que são capazes.”Luna Gonçalves da Silva, doutora em ciências
“A inserção das mulheres no transporte rodoviário de cargas desafia empresas e a infraestrutura existente nas rodovias do país a acompanharem as transformações sociais no mundo do trabalho, incluindo as demandas de um novo perfil de trabalhadoras”, diz Luna Gonçalves.
[gallery type="slideshow" size="full" ids="17849,17850,17851,17852,17853,17854,17855"] “Os impactos do trabalho são dores lombares e na coluna; problemas relacionados ao sono; necessidade de recorrer ao consumo de drogas, como anfetaminas e cocaína, para se manterem acordadas; estresse; infecção urinária e uso ininterrupto de anticoncepcionais”, descreve a pesquisadora da USP em sua tese de doutorado. Conforme ressalta a especialista, a entrada de mulheres em “atividades masculinas” ameaça a predominância de homens em determinados segmentos do mercado de trabalho. Derruba, ainda, pretensões e capacidades ditas como exclusiva deles, tais como a força física. “Percebidas como intrusas em território masculino, as mulheres são confrontadas com diversas formas de perseguição, podendo chegar à violência física, além de serem constantemente marginalizadas”, detalha Luna. Na cultura da estrada, todos ganham um codinome, o QRA. O apelido é usado, por exemplo, em conversas de rádio. Entre os colegas de trabalho, as mulheres caminhoneiras são chamadas de “cristal”, mas suas características em nada remetem à fragilidade desse material. Durante muito tempo nesse meio, o gênero feminino só tinha lugar nas revistas adultas carregadas na boleia. Quando muito, mulheres estavam no assento do passageiro, fazendo companhia a namorados ou maridos. Aos poucos, elas conquistam espaço e protagonismo no setor.