A Fome Silenciosa: Por Trás dos Números e do Mapa

Em 2024, o Brasil celebrou um marco importante: a saída oficial do Mapa da Fome, uma conquista que parecia distante após anos de retrocesso. No entanto, enquanto a notícia era festejada nos grandes centros e nos corredores do poder, a realidade nas periferias do país continuava a ter um eco silencioso, mas ensurdecedor: o som de uma geladeira vazia.

A Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quantifica o problema em quatro níveis. A segurança alimentar representa o acesso pleno e regular a alimentos de qualidade. Já a insegurança leve revela o medo e a incerteza sobre a próxima refeição. A moderada indica a redução na quantidade e na variedade dos alimentos consumidos. E a grave, o estágio mais crítico, é a fome real, com a falta total de alimentos para uma ou mais refeições diárias. Para os órgãos de controle, esses são apenas números em planilhas. Mas nas bordas das cidades, cada estatística tem um rosto, um nome, uma história.


 

O Rosto da Fome: O Dia a Dia nas Periferias

 

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A história de dona Izabel, que vive em uma dessas periferias de autoconstrução e carência de infraestrutura, revela a crueza da situação. A sua manhã começa com um inventário doloroso: duas garrafas de água, restos de farinha, um pote de açúcar quase vazio e um único ovo. Diante dessa escassez, a solução improvisada para o café da manhã das duas crianças é uma mistura de açúcar e água. O ovo, item raro, é reservado para a criança que reclamar mais, um gesto de otimização da miséria.

Dona Izabel exemplifica os 58,7% da população urbana que enfrenta algum grau de insegurança alimentar. Desses, 28,5 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança grave, pulando refeições e lidando com a incerteza diária. A vulnerabilidade é ainda maior em lares chefiados por mulheres, especialmente mulheres negras com filhos. Dados do RASEAM 2025 mostram que, nesses domicílios, 20,8% enfrentam insegurança leve, 6,2% a moderada e 4,6% a grave. Apesar de auxílios como o Bolsa Família, o benefício muitas vezes cobre apenas uma fração do custo de uma cesta básica, forçando as famílias a recorrer a fiado, favores ou a uma criatividade desesperada para fazer o pouco render.


 

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Insegurança Alimentar Além da Falta de Comida

 

A fome não é apenas a falta de comida. Ela é um problema complexo, enraizado em uma série de desigualdades. Viver longe dos centros urbanos eleva o custo de vida de forma brutal. O transporte público, muitas vezes precário, consome horas e uma parte significativa do orçamento. Para quem depende de empregos informais, conhecidos como "bicos", a renda é instável e raramente ultrapassa um salário-mínimo.

A insegurança alimentar também se manifesta na ausência de serviços públicos básicos. Quando 26% dos lares brasileiros não têm acesso regular a água potável e 34% carecem de coleta de esgoto, tarefas simples como preparar arroz e feijão se tornam desafios logísticos. A falta de saneamento básico compromete a higiene e a saúde, aumentando o risco de doenças e tornando a privação alimentar ainda mais perigosa.

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O Futuro do Brasil em Jogo

 

Embora o governo preveja um investimento de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) em 2025, a execução da política ainda é um desafio. Apenas 22% dos municípios participam ativamente do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), o que sugere uma desconexão entre a intenção e a prática. Para muitas famílias, os benefícios chegam primeiro nos relatórios oficiais do que nas panelas.

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Apesar das falhas estruturais, iniciativas locais emergem como faróis de esperança. Hortas comunitárias, cozinhas coletivas, bancos de alimentos e redes de troca nascem da solidariedade e do conhecimento de quem enfrenta o problema diariamente. Essas redes, construídas de baixo para cima, oferecem soluções imediatas e poderiam servir de modelo para políticas públicas mais eficazes e adaptadas à realidade de cada comunidade.

A escassez de hoje molda o Brasil de 2030. Segundo o Ministério da Saúde, em breve o número de idosos superará o de crianças de zero a 14 anos. Cada criança que sofre de subnutrição agora será um adulto com menor capacidade produtiva em um país que precisará sustentar uma população envelhecida. A superação da insegurança alimentar exige mais do que indicadores internacionais positivos; requer um reconhecimento de que famílias, como a de dona Izabel, que precisam escolher entre transporte e alimentação, estão vivendo um problema presente que está preparando uma crise futura.

O desafio é construir a base humana do país que queremos a partir de 2030. Isso significa transformar as estruturas que mantêm a exclusão, entendendo que, se a privação tem endereço, nome e sobrenome, as soluções também precisam ter. O tempo é curto: as crianças que hoje enfrentam carência alimentar serão os jovens de 2030. Que país estamos escolhendo construir?

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