A British American Tobacco (BAT) Brasil, antes conhecida como Souza Cruz, foi uma das patrocinadoras do “1º Fórum Jurídico: Brasil de Ideias”, que reuniu ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), autoridades do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), juízes de outras Cortes superiores e representantes de empresas privadas no luxuoso hotel The Peninsula, em Londres, na Inglaterra. A multinacional da indústria do tabaco tem pelo menos dois processos na Suprema Corte e é parte interessada em outra ação sob relatoria do ministro Dias Toffolli, que viajou à capital inglesa para participar do evento entre os dias 23 e 26 de abril.
O ministro Alexandre de Moraes e o decano do STF, Gilmar Mendes, também participaram do encontro em Londres. Procurados, os ministros não se manifestaram. Em nota, a BAT afirmou que o evento é “um importante fórum de discussões sobre os desafios de investimentos no Brasil, especialmente no que se refere à segurança jurídica e à concorrência leal”.
O evento foi organizado pelo Grupo Voto, que, em 2022, promoveu o almoço do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) com 135 empresárias, em São Paulo. A instituição presidida pela cientista política Karim Musklin afirma nas redes sociais que a sua missão é promover “diplomacia empresarial e relações institucionais”, sob o slogan: “Há 20 anos fomentando a união dos setores público e privado em busca de um Brasil mais competitivo”.
Os organizadores do Fórum Jurídico realizado em Londres não informaram abertamente quem foram os patrocinadores do evento, tampouco se foram convidados agentes do setor privado com interesses em ações que tramitam no STF. A instituição ainda vetou a participação de jornalistas. Os ministros do STF que participaram do encontro não informaram que passariam ao menos três dias no exterior em atividades promovidas pela inciativa privada.
As diárias no hotel The Peninsula, onde o evento foi realizado, variam de £ 800 (R$ 5.135) a £ 8.100 (o equivalente a R$ 51.995). Procurado pelo Estadão, o STF afirmou que “não pagou diárias, previstas para custear hospedagem e outras despesas”. Além disso, a Corte também não “custeou passagem de ministro porque só emite bilhete internacional quando o ministro vai na representação da presidência do STF”.
Em nota, os organizadores afirmaram que “todos os custos operacionais são de responsabilidade do Grupo Voto, que é uma entidade privada, não havendo utilização de recursos públicos”. A organização também declarou que “os critérios para selecionar os painelistas foram estabelecidos com base na relevância de suas áreas de atuação”, mas não respondeu se identificava conflito de interesses num evento com ministros do STF patrocinado pela BAT.
Os organizadores não responderam qual foi o valor do patrocínio da BAT e disseram que “mantêm parcerias estratégicas com empresas privadas há mais de 20 anos que apoiam a realização de eventos como forma de estimular debates sobre temas essenciais ao país”.
O Estadão enviou questionamentos aos gabinetes dos ministros Gilmar, Moraes e Toffolli sobre a presença de uma empresa com interesses no STF entre os patrocinadores do evento. Não houve resposta.
No convite do evento na Inglaterra consta o nome da BAT como patrocinadora. Além da multinacional do tabaco, o fórum também foi patrocinado pela Exa Go Safe, uma startup na área de segurança ligada à FS Security. Como mostrou o Estadão, o empresário Alberto Leite, dono da FS Security e admirador do dono da Tesla e do X (antigo Twitter), Elon Musk, esteve entre os patrocinadores.
Em nota, a BAT apenas informou que é “parceira” do grupo organizador do evento “há mais de 15 anos em diversas iniciativas de comunicação organizadas pela entidade, assim como apoia outras organizações e veículos de comunicação que promovam o debate de temas relevantes para a sociedade, prática legítima no setor privado”. A empresa não respondeu se patrocinou todo o evento e com quanto colaborou, tampouco se julga haver conflito de interesses ao bancar a presença dos ministros no encontro.
Dias Toffolli deu decisão que travou ações contra empresas de fumo
A BAT integra a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), que atua no STF como amicus curiae em ação que pede a derrubada de uma resolução publicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2012. A medida restringiu o uso de aditivos, como aromatizantes e flavorizantes, em produtos de tabaco. O caso tramita no STF sob repercussão geral - quando a decisão dos ministros se torna obrigatória para todos os tribunais do País. Esse é o processo relatado por Toffolli.
Em setembro do ano passado, Toffolli atendeu a um pedido feito pela Abifumo para que todas as ações em curso no País relacionadas ao uso de aditivos em produtos de tabaco fossem suspensas até que o STF terminasse de julgar o tema. O ministro argumentou no despacho que a medida “impede a multiplicação de decisões divergentes ao apreciar o mesmo assunto, consistindo, por assim dizer, em medida salutar à segurança jurídica”.
A Abifumo contabilizava ao menos 36 ações em tramitação sobre o tema em todo o Brasil. Seis meses após assinar a decisão que beneficiou todo o setor do Tabaco, Toffoli deu palestra sobre os “Riscos e Benefícios da Inteligência Artificial Para as Eleições e a Indústria do Brasil” no evento promovido por uma das associadas
A decisão do ministro mudou o curso de um processo que se arrasta há anos. A indústria do tabaco luta desde 2012 para derrubar em diferentes instâncias a aplicação da decisão da Anvisa relacionada aos aditivos. As empresas do ramo usam uma brecha jurídica para continuar a comercializar os produtos enquanto o STF não bate o martelo sobre o tema. Artigo publicado pelo Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Fiocruz aponta que a adição de sabores e aromas aos cigarros é uma estratégia das empresas para atrair o público jovem.
A BAT é parte direta em outros dois processos que têm como relatores os ministros Kassio Nunes Marques e Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF. Ambos não participaram do evento na Inglaterra.
Um dos processos teve origem numa ação civil pública apresentada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) para impedir a empresa de realizar a chamada “avaliação sensorial” de seus produtos, nome dado à prática de prova de cigarros por pessoas contratadas. Essa ação é relatada por Nunes Marques. O outro caso está sob responsabilidade de Barroso e trata de um mandado de segurança apresentado pela própria BAT para suspender um decreto do governo do Pará que mudou, em 2013, regras de cobrança de imposto.
“É uma situação frontal de conflito de interesses, exatamente porque o modus operandi das empresas de tabaco é fazer lobby e influenciar decisões dos formadores de política. É um jogo que eles fazem no Brasil e em todas as partes do mundo para influenciar as leis que restringem as práticas predatórias dessas empresas”, avaliou Tânia Cavalcante, que é ex-secretária executiva da Comissão Nacional de Implementação da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco. “Espera-se de juízes do Supremo Tribunal Federal que mantenham a neutralidade nessas relações com setores que são alvos de julgamentos”, completou.
A Convenção-Quadro para Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS), da qual o Brasil é signatário, determina que todos os países membros do tratado “agirão para proteger essas políticas dos interesses comerciais e outros interesses da indústria do tabaco”.
O preâmbulo do documento determina que as autoridades nacionais deverão “manter a vigilância ante qualquer tentativa da indústria do tabaco de minar ou desvirtuar as atividades de controle”. Para Cavalcante, o ministro Toffolli entrou em atrito com pontos da Convenção ao participar de um evento fomentado por um agente privado interessado em sua decisões.
“Não tem razão de um ministro (participar deste tipo de evento), a não ser que ele não soubesse”, disse. “O ministro deveria se abster, pois é o julgador de um tema tão delicado para a saúde pública, que vem sendo altamente discutindo, e ele sabe como a indústria opera”, prosseguiu. “Qualquer ministro do STF que vai a convite deveria saber dos seus patrocinadores para justamente evitar esse tipo de situação constrangedora”, completou.
A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, reforça que há conflito de interesses na participação dos ministros no evento, pois a BAT é parte interessada em diferentes ações que tramitam no STF. Ela avalia que há elementos que podem basear eventuais pedidos de suspeição dos ministros que participaram do evento. “É grave. Não é o ideal que aconteça esse tipo de coisa na esfera da administração da Justiça”, disse.
“Ele (Toffolli) está mais sujeito a crítica e aos próprios mecanismos do direito: seja uma parte ou outros interessados no processo entrarem com pedidos de suspeição ou arguição questionando a imparcialidade do ministro. Isso acaba prejudicando a tomada de uma decisão importante em uma seara que envolve saúde pública”, afirmou. “É um problema também de confiança das pessoas nas instituições”, completou.
Leia a íntegra da nota da BAT Brasil
A BAT Brasil informa que é parceira do Grupo Voto há mais de 15 anos em diversas iniciativas de comunicação organizadas pela entidade, assim como apoia outras organizações e veículos de comunicação que promovam o debate de temas relevantes para a sociedade, prática legítima no setor privado. Em relação ao evento citado, a companhia entende tratar-se de um importante fórum de discussões sobre os desafios de investimentos no Brasil, especialmente no que se refere à segurança jurídica e à concorrência leal.
Leia a íntegra da nota do Grupo Voto
O Grupo VOTO mantém parcerias estratégicas com empresas privadas há mais de 20 anos que apoiam a realização de eventos como forma de estimular debates sobre temas essenciais ao país. Todos os custos operacionais são de responsabilidade do Grupo VOTO, que é uma entidade privada, não havendo utilização de recursos públicos. Os critérios para selecionar os painelistas foram estabelecidos com base na relevância de suas áreas de atuação para os temas tratados no fórum, em uma seleção conduzida de forma a garantir uma representação diversificada e especializada, contribuindo para um debate aberto e esclarecedor.
Leia a íntegra da nota do STF
O STF não custeou passagem de ministro porque só emite bilhete internacional quando o ministro vai na representação da presidência do STF. O tribunal também não pagou diárias, previstas para custear hospedagem e outras despesas.
*Por Weslley Galzo/Estadão