- 23/04/2024 - Itapecerica/MG
De início, foi uma frase: “A Márcia trabalha comigo há 15 anos”, disse o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. “Márcia, por favor.” Uma mulher negra e baixa, de braços largos e com a expressão encabulada, levantou-se de uma cadeira nos fundos do majestoso salão do segundo andar do Palácio da Cidade, uma das sedes da administração municipal, no bairro de Botafogo.
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Até então a assessora Márcia da Rosa Pereira Nunes era uma cidadã anônima. Ela atravessou o lugar com um bloco de notas nas mãos, espremendo-se entre cerca de 250 pastores e líderes de igrejas evangélicas até alcançar o chefe.
“Se os irmãos tiverem alguém na igreja com problema de catarata, se os irmãos conhecerem alguém, por favor falem com a Márcia”, disse Crivella ao lado da assessora, que costuma representá-lo em agendas com diretores de hospitais municipais e federais do Rio de Janeiro.
“Ela conhece os diretores de toda a rede federal, conhece o diretor de Ipanema, da Lagoa, do Andaraí, de Bonsucesso, do Fundão, conhece os diretores de todos os hospitais da rede municipal que eu já apresentei a ela, que já vieram e almoçaram conosco, de maneira que ela me representa em todos esses setores. Miguel Couto, Souza Aguiar, Lourenço, Salgado, Piedade e vai por aí afora”, continuou, emendando: “É só conversar com a Márcia, que ela vai anotar, vai encaminhar e, daqui a uma semana ou duas, eles estão operando”.
A plateia estava reunida durante o “Café da Comunhão”, um evento secreto convocado um dia antes por WhatsApp para que pastores levassem à prefeitura demandas variadas de igrejas e fiéis, a relação de suas igrejas e o número de membros. Tudo a convite “de nosso amado e querido prefeito Marcelo Crivella e dos pré-candidatos Rubens Teixeira e Raphael Leandro”.
O prefeito Marcelo Crivella, do PRB, remanejou cargos na administração na tentativa de conter os vereadores que pedem seu impeachment - Pablo Jacob / Agência O Globo
A imagem do cartão da servidora se alastrou pela internet. Seus telefones foram divulgados maciçamente. A foto dela foi parar na TV. O samba criado para Márcia diz: Se não tem vaga no SUS/Nem remédio na farmácia/Fala com a Márcia/Fala com a Márcia”. “Estou assustado”, contou Luiz Fernando Cordeiro, o compositor. “Nunca tive uma repercussão dessa.” Segundo ele, que trabalha como advogado no Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro, a letra foi composta dois dias depois da revelação das benesses prometidas. Cordeiro a cantou publicamente pela primeira vez no Botequim Vaca Atolada, um bar no centro da cidade onde compositores se reúnem toda terça-feira para exibir sambas inéditos e autorais. Compartilhada por WhatsApp, a música se tornou sucesso instantâneo. Faz várias referências à agenda escondida de Crivella.
Para a promotora Gláucia Santana, que investiga casos de improbidade no Ministério Público (MP) estadual, as ofertas de Crivella engrossaram a investigação iniciada 11 meses atrás. O MP anotou quando integrantes da Guarda Municipal foram questionados pela prefeitura, num censo registrado em formulários, sobre sua religiosidade; quando a prefeitura cortou recursos de eventos como a Parada Gay e a tradicional procissão em homenagem a Iemanjá; ou quando demitiu funcionários comissionados para abrir espaço para aliados da igreja.
Três pedidos de impeachment de Crivella foram protocolados na Câmara Municipal. A oposição tenta reunir forças para obter a difícil maioria em favor do impeachment. Em plenas férias, os opositores conseguiram um terço da Casa para pedir a suspensão do recesso. Crivella alegou que já fez 1.000 encontros do tipo, com diversos setores da sociedade. Contudo, mesmo sendo instado a dar detalhes, manteve-se calado. Mobilizou sua base a reagir. Movimentou a caneta para remanejar cargos na esfera municipal. E saiu a desancar a imprensa.