Incêndio em prédio de SP teve gritos, correria e até portão de saída trancado

Por Folhapress
Foram menos de duas horas entre os primeiros relatos de fogo no quinto andar e o colapso total do edifício Wilton Paes de Almeida. O prédio de 26 andares desabou na madrugada do dia 1º em frente ao largo do Paissandu, no centro de São Paulo. Abrigava nos dez primeiros pavimentos 171 famílias.

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  Em meio ao fogo, fumaça e desespero, a maioria conseguiu sobreviver. Os bombeiros localizaram um corpo e buscam cinco desaparecidos. Assim como outros imóveis, a igreja vizinha também foi atingida. A zeladora e o marido que moram na casa do fundo escaparam por pouco. 1h15 Antonio David Pereira, 76, compunha mentalmente uma canção para a igreja que frequenta. Olhava para o teto, deitado na cama cercada pelos tapumes que demarcavam o perímetro de seu cantinho no quinto andar do edifício. "Pensava na música, nos melhores timbres, quando veio a gritaria", diz ele, que faz bicos de cobrança para uma ONG. Uma briga teria começado ao lado, segundo Antonio ("como sempre acontecia com aquele casal" de seus vizinhos). A fumaça começa a invadir seu espaço. Rapidamente as labaredas se alastram e consomem as paredes de madeira. Na versão da Polícia Militar, o fogo não teve início com a briga relatada pelos moradores, mas foi causado por um curto-circuito em uma tomada daquele andar. "Era fogo de álcool, tenho certeza." No piso abaixo, a cabeleireira Thabhatha Marques Freire , 30, olha para um de seus dois celulares antes de dormir. Ninguém precisou avisá-la do incêndio. "Senti o ar quente descendo", diz ela, que trabalha no programa municipal Transcidadania, voltado a transexuais. Ela então olha em volta. "Já senti o movimento do corredor e as pessoas gritando de desespero." Thabhatha Marques Freire, 30, morava no quarto andar do edifício Wilton Paes de Almeida, no largo Paissandu Bruno Santos/ Folhapress Thabhatha Marques Freire, 30, morava no quarto andar do edifício Wilton Paes de Almeida, no largo Paissandu 1h27 Os bombeiros foram acionados à 1h27, como consta no grupo de WhatsApp que reúne parte do comando operacional da corporação. "20 Vtrs [viaturas] no atendimento, 45 homens", informaram numa rede social pouco depois. A desempregada Neuza de Souza, 55, morava no térreo. Sentada em uma cadeira que recolheu da rua, confere o caderno de escola do filho de 15 anos. Que também olhava o celular. Só eles e outros dois senhores moravam no térreo por causa do inconveniente do rastro de água imunda que desaguava próximo. "Naquele momento escutei um estrondo", diz Neuza. De repente clareou e escureceu tudo. Caiu a energia do prédio todo, que era precariamente puxada do semáforo da rua. Outro estrondo em seguida. O filho de Neuza desce da beliche. "Mãe, vamos sair fora porque tá parecendo que estão explodindo uma bomba no prédio". Os dois abrem a porta de casa e está tudo escuro. A gritaria aumenta. Antonio David não demorou a descer as escadas, "com as calças na mão", de cueca mesmo. Só se vestiria completamente já na calçada do centro de São Paulo. Thabhatha já tinha recolhido os dois celulares e o passe de ônibus, as únicas coisas que salvou além da roupa do corpo. Desce os quatro andares "em segundos". Ela conta: "Tinha aquela muvuca no corredor, as pessoas descendo, correndo, desesperadas para tentar sobreviver". A temperatura subia dentro no prédio, e a fumaça se espalhava ainda mais pelas escadas e pelo vão do elevador cujo fosso era usado como lixeira pelos moradores. No térreo, descalço e sem camisa, o filho de Neuza segura a mãe pelo braço, com pressa para ganhar a rua. "Falei: 'Vou pegar o documento, o RG'. Ele falou: 'Não, mãe, vamos sair'. Ele entrou em desespero." 1h30 O barulho de explosões e gritos acorda a baiana Maria da Silva Oliveira, 53, desde 1995 em São Paulo. Ela dormia com o marido na casa que fica nos fundos da Igreja luterana Martin Luther King, ao lado do prédio de vidro (como muitos dali chamavam a ocupação). Maria é zeladora da igreja. Em 3 de março, fez 21 anos que ela e o marido moram ali. Foi nessa igreja que os dois se casaram, em 2003, mesmo já estando juntos desde 1985. As pessoas gritavam na rua. "Abri a janela e vi o fogo. No começo parecia que era no prédio do outro lado da rua." Demorou a perceber a proximidade das chamas. Não esperava que aconteceria o que aconteceu. A expectativa era que o fogo seria controlado. Andam de um lado para o outro da casa e, por telefone, chamam pela filha, que mora em uma outra ocupação vizinha. No prédio de vidro, dona Neuza e o filho, Antonio David, Thabhatha e outras dezenas de moradores encontram o portão de saída trancado. "Sabe aqueles gritos de pavor?", lembra Neuza. "O povo já estava descendo pro outro lado, aí vimos o cara com uma barra quebrando um vidro do lado". Conseguem sair. 1h56 A zeladora da igreja e o marido decidem ligar para o pastor. O horário ficou marcado no celular e na memória, diz Maria. Percebem que já deviam ter saído, e o pastor insiste que se apressem. Assustados com o barulho, os quatro gatos da casa se refugiam. "Um já entrou na caixinha [de transportar animais], um ficou atrás da estante, outro na cadeira, outro no meu pé". Conseguem salvar todos. "Meu marido falou: 'Pega alguma roupa'. Mas não peguei nada. Só os documentos e os gatos." 2h05 O acesso à casa da zeladoria da igreja se fazia pela lateral, um corredor entre o templo e o edifício prestes a ruir. Já naquela hora, 30 minutos após o início do incêndio, as chamas impediam a saída por ali. Eles entram na igreja pelos fundos, enquanto os vidros laterais já se rompem com a força do fogo. As labaredas chegam ao primeiro piso, na altura da igreja. Eles saem pela porta da frente, e os bombeiros conseguem tirá-los dali. 2h40 Camila Andrade, 28, acordou com a mãe assustada ainda no início do incêndio. Da janela do apartamento na rua Santa Ifigênia, no quarteirão de trás do prédio de vidro, as duas viam o fogo ganhando os andares rapidamente. "A gente escutava de casa o pessoal gritando: 'Socorro, tira a gente daqui'", diz Camila, que é cuidadora de idosos. Ela e a mãe têm conhecidos na ocupação, além de manter amizade com Maria, zeladora da igreja. A angústia cresce à medida que o fogo se alastra. A cuidadora grava pelo celular uma pessoa acima do quinto andar pedindo ajuda, sinalizando com a luz do celular. Acompanha agentes dos bombeiros na iminência do socorro de Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, conhecido como Tatuagem. 2h50 O prédio cai. Registros do grupo de conversas do WhatsApp dos bombeiros indicam o horário exato. Tatuagem não pôde ser salvo. O corpo encontrado no início da tarde de sexta (4) em meio aos escombros é o dele. Uma bola de fogo e de fumaça se forma após o desabamento. "Minha mãe ficou sem dormir duas noites depois de ver isso", diz Camila. Nos dias seguintes a fumaça ainda persistente impede que a família deixe a janela aberta. O tenente dos Bombeiros André Elias dos Santos chega minutos depois para auxiliar o atendimento à imprensa. "Tinha muita poeira no local, as viaturas estavam todas cinzas, lembrou muito as imagens do 11 de setembro." Antonio David vê o desmoronamento do largo do Paissandu. "Foi uma coisa tristemente espetacular", diz ele. O desabamento encerrou o tempo que morou no prédio de vidro, um ano e três meses. "Mas morar em ocupação um ano e três meses é um século." Assim como ele, é do largo, ao lado da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que a maioria dos sobreviventes acompanha o desmoronamento do prédio que, apesar das precariedades, era seu lar. Lá muitos ficaram nos últimos dias à espera de algum auxílio. Thabhatha mostra no celular a última mensagem que trocou com Selma, uma das desaparecidas. "Era minha amiga pessoal. Foi a 1h38, está registrado. Tenho certeza que mais gente ficou no prédio, mas não tem registro".

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